Olá Zé, voltei.

Eu sei, Zé. Faz uns tempos que fui embora. Fiz as malas, sabes. Meti nelas as dores que a vida causou e fui para longe. Fiz umas férias no Triângulo das Angústias. Despi-me de muitas inseguranças e meias verdades. Bebi das minhas lágrimas até secar e sentir as veias estalarem nos meus olhos com o padrão de um rio seco em pleno agosto. Voltei mendiga. Talvez seja por isso que não me reconheças. Estou a aprender a andar outra vez, Zé, envolvida numa fisioterapia de vida. Na ausência de mim mesma um momento de insanidade assaltou-me o peito sem se anunciar; parti as minhas próprias pernas. Estava exausta de andar, não aguentava mais. Não me lembrei que... Precisava apenas descansar. Tu conheces-me, Zé, sabes que sou uma alma que não sabe descansar. Sabes perfeitamente que a minha mente não se apercebe do quão procaz é por não me deixar dormir. Só que nem tudo é mau. Eu voltei e sabes, Zé, vou-me reinventado, todos os dias me construo mais um bocado: crio mais um pilar ou mais um degrau. Isso é bom, não é Zé? Mas... ainda tenho palpitações quando vejo os meus fantasmas passar para o lado de lá de uma esquina. Sustento a respiração na esperança que o ar que aguento nos pulmões me torne mais leve e me leve dali. Fecho os olhos e permito-me respirar outra vez. Ai, Zé, custa muito. Quando dou conta, o meu medo quase me deixa a correr cegamente, quase me rasgo na tentativa de sair de dentro de mim. Tenho que parar e ter um diálogo com o coração. Há alturas que sabe bem tão estar por aqui, existe o cheiro a chuva e terra molhada, a pão quente, a manjerico, tudo isto e tantas outras coisas que são lembradas por Capicua na sua casa do campo, verdadeira e sem morada. Mas não há campo nem cidade que supere o lugar que tenho vindo a criar dentro de mim, Zé. Estou a fazer uma casa cá dentro. Já chega de mendigar por uma caixa de cartão no peito dos outros. Ficar louca sem ter um coração que me interne, ser escrutinada pelas minhas manias de esperançar que vou ser provada estar errada nos meus ceticismos e julgamentos, oh Zé, mas onde é que eu tinha a cabeça? Conhecer o jogo todo e ainda assim, agarrada a um fio de amência transitória, julgar que poderia desta vez haver um dado equilibrado na mesa; eu metia a alma em jogo e depois arrependia-me do all in. De certa forma jogava sozinha com audiência. Deixei-me disso, larguei esse vício e dediquei-me a jogos estratégicos, Zé. Mas, sinceramente... vou dar tantas voltas às minhas teorias que vou acabar por perder contra mim mesma mais uma vez. Basta releres esta carta que te envio, para perceberes que eu nunca acabo aquilo que começo. Perco e perco-me. No final, com finais que não deixo que existam.

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