
Entrei já fazem bastantes luas. Deixei-me ficar, pagando com tempo. Que espetáculo tão caro, não é? Mas era interessante. Vi de tudo um pouco. Monstros tão bem camuflados, em roupas humanas infestadas pelo cheiro a tabaco e outras substâncias. Tinham sorrisos estampados, mecanizados, hipnotizadores. Levavam à ilusão de que estava tudo bem, pertences ali. Atraem com palhaçada, alegria descontrolada e imagens que nunca antes se viu. Uma dimensão paralela, com luzes coloridas. Parecia tudo tão convidativo. Ontem parei e observei o circo que me rodeava. Egos baixos compensados pela sensação de deglutinar líquidos que deixam a garganta em chamas; o desenfreado movimento pela conquista de espaço, para poder expulsar todos os demónios da semana, do dia, da cabeça; a tentativa de escapar da realidade pelo fumo. Pesou-me tudo. Meu corpo não reagia porque a minha cabeça pensante sugou todas as energias. As palavras que me caíam em cima, vindas de todas as direções, tomavam formas noutros contextos. Não, eu não estava sob efeito de alucinogénios nem do meu desinibidor alcoólico preferido. Estava sóbria. Friamente sóbria. Observei individualmente cada artista da minha circunvizinhança. Olhos fechados, como se as companhias noturnas apenas existissem para garantir que, assim que abrisse os olhos, estaria ali alguém, para partilhar o espaço e eufemizar a sensação de solidão que lhes invade a alma. Chega a uma altura que estar com alguém de olhos fechados torna-se entediante, então passa-se ao contacto. Tenta-se que as químicas se misturem ao mesmo tempo que as línguas se contorcem entre si. São espetáculos à parte, privados. Às vezes as químicas que ali explodem, acabam em arrependimento devido a baixo rendimento da reação ou devido a componentes incompatíveis. Este tipo de jogo, é muito frequente. Mas, mesmo correndo o risco de perder tudo, parece que ninguém evita jogar. Lançam-se os dados e logo se vê. Afinal, isto é um circo, podemos até ter algumas risadas ao ver certas aberrações no seu tempo de protagonismo. E há aberrações de todos os tipos, que é o mais impressionante. No entanto, todas têm algo em comum: são mantidas em jaulas e só são libertadas naquela altura. Que resultado se espera de criaturas dessas? Reações extravagantes e exageradas; não se pode culpar, há tanta ferida nessas almas que, se fossem traduzidas fisicamente, quase todo o corpo seria carne viva. Liberdade de curta duração, terminada por vezes com um colapsar de sentidos, brindado pela luz dos primeiros raios matinais, pela realidade que isso carrega.
No fim disto tudo, cheguei à porta por onde entrei e voltei a olhar acima do ombro. Ainda consegui ver algumas criaturas que não foram corrompidas pela tentação, cujas perspetivas de vida ainda não foram adulteradas. Entraram cá poucas vezes. Admiro quem cá fica. Ou é dono do circo ou é alma perdida. Por vezes, são ambos.
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