Querido Zé
Olá, Zé! Então, como anda a vida? Eu estou indo bem, sabes. Estou seguindo, tive que seguir. não foi fácil, mas eu tive que aprender, Zé. Aprendi mais nesses últimos meses do que já aprendi em toda vida. Porque é na dor que crescemos, sabes Zé? É assim a vida. Tive que mudar algumas coisas também, aqui dentro, e elas mudaram rapidinho, sabes? Como se fosse automático. Mas por fora eu mesma que tive de mudar. Mudei velhos hábitos que pensei que levaria para o túmulo. Talvez eu realmente tenha levado, sabes? Porque eu morri, Zé. Morri ali, quando a solidão tomou conta de cada pedacinho de mim. Morri no mesmo instante que me perdi. Não sabia mais quem eu era nem o que estava a fazer. Foi duro, Zé... Passei noites e noites sozinha. Só ouvia os meus soluços ecoando pelas paredes vazias daquele velho apartamento. Ah, aquele apartamento… já viu tantas coisas… Vivi muitos momentos lá, Zé, mas nos últimos dias tudo que eu via era minha antiga eu lá. E o cheiro dele entranhado em cada espaço possível do ambiente. Não deu mais, sabes. Eu estava a tentar mudar o rumo da minha vida. E como tu mesmo sabes, Zé, não se pode começar uma nova peça num cenário velho. Não dá, não dá mesmo. Então eu fui-me embora, Zé. Pensei que seria mais fácil, mas enganei-me redondamente. A cada caixa embalada, sentia como se um pedaço da minha história estivesse a morrer. Mas do que me valia, Zé? Se eu mesma já tinha morrido. Então continuei; tirei os quadros da parede, todos os livros da estante, a minha coleção de chávenas do armário da cozinha, guardei numa caixa todos as coisas românticas e os filmes que costumávamos ver aconchegados nos dias de chuva. Mas quando cheguei ao quarto, Zé, aí a facada foi muito mais funda. No quarto a dor voltou, Zé. Como se estivesse escondida no cantinho do fundo da cómoda. Ah, Zé, bateu mesmo lá no fundo, sabes? Isso é crueldade comigo, pensei. Aquela cama lá, onde passamos tantas noites de pura felicidade. Onde eu costumava sentir nosso amor fluindo pelos lençóis. Lá estava ela, desta vez vazia. Não havia mais nada. Nem um único vestígio de tudo o que um dia tínhamos passado lá. Só as lembranças estavam presentes agora. Fui ao guarda-roupa, e lá tive eu que me segurar para não desabar outra vez, Zé. Eu vi aquele blazer vermelho lindo que ele me deu no nosso primeiro aniversário de namoro. Aquela camisola amarelo canário que ele me comprou naquela viagem… Oh, Zé, como doeu. Tive que encaixotar tudo aquilo, lutando para não derramar mais uma lágrima. E na altura de guardar as roupas que ele lá tinha deixado, tive que usar todo o meu auto-controlo para não me aconchegar naquela manga-cava preta que ele usava sempre. O cheiro estava lá, Zé, como se ele a estivesse a vestir naquele momento. Pus tudo na caixa sem pensar muito, porque eu sabia que mais um segundo a segurar aquilo tudo me faria mudar de ideias. Fui guardando tudo, Zé. Cada pedacinho da minha vida naquele lugar acabou em caixas. E então estava tudo vazio, tudo que ficou foi aquela mancha no colchão da cama daquela noite em que ele me fez uma surpresa com velas. E quando fechava os olhos eu ainda conseguia sentir o cheiro do café que ele me fazia todas as manhãs. Parecia tortura aquilo, Zé. Mas eu consegui, consegui dizer adeus. E quando passei por aquela porta, pensei na fúnebre noite em que ele passou por ela, sem saber que me ia deixar para sempre. Pensei em como eu faria qualquer coisa para que as coisas não tivessem de ser assim. E eu tentei, Zé. Fiz de tudo para não o deixar. Nas últimas semanas antes de ele ir embora, eu me dividi em cinco só para tentar arranjar uma solução. Fiz de tudo para ele se aperceber que tínhamos que mudar. Não deu certo, Zé. Já não era a mesma coisa, e nós os dois sentíamos isso. Só que eu estava desesperada, a simples ideia de não o ter mais comigo fazia-me tremer. Já viste isso, Zé? Depois de me torturar um pouco voltando àquele dia, fechei a porta, dei um último suspiro e desci as escadas; rumo a um novo capítulo da minha vida. Pronta para continuar. E continuei, Zé. Estou aqui, não estou? Já fazem quase seis meses, e eu estou recuperada. A cicatriz ainda dói se eu lhe der atenção, mas fora isso, é como se ele nunca tivesse passado por aqui. Engraçado como as coisas são, né, Zé. Num segundo, eu apaixonei-me, passado alguns dias, eu amei-o tanto, passamos meses e anos juntos, e, de repente, tudo acabou. Como pôde isso ter que ser assim, Zé? Passei por muita coisa para chegar onde estou agora. Fácil? Não foi. Muito pelo contrário. Foram as coisas mais difíceis que eu já fiz. Aqueles foram os momentos mais difíceis pelos quais eu já passei. Pensei que fosse morrer, Zé. Pensei mesmo que a dor fosse parar o meu coração. Ou que talvez aquele vazio me engolisse mesmo. Mas nada aconteceu. Eu só estraguei meus lençóis com as manchas de rímel. Chorei tanto, Zé, chorei até não ter mais lágrimas. Depois descobri que tinha, sim, e chorei mais. Foi assim que uma parte de mim morreu, Zé. Mas olha bem para mim agora, inteira de novo. Ou quase isso. Eu superei. Foi o que todos me aconselharam a fazer, e foi o que eu fiz. Superei, Zé. Passei por cima de tudo que me deixou em baixo, olha só a ironia. E sabes que mais, Zé? Eu estou feliz. Feliz mesmo, sabes? Acho que estava perdida esse tempo todo, Zé. Mas agora eu encontrei-me. Creio eu que nunca estive melhor. Estou a amar-me mesmo, Zé, dá pra acreditar? Eu mudei, por dentro e por fora também. Um novo corte de cabelo, roupas novas, tudo pra combinar com a minha nova vida. Hoje eu vejo que aquilo foi por bem, Zé. Porque se ele não tivesse passado por aquela porta, e deixado sozinha e perdida, eu não me tinha encontrado. Só hoje eu vejo que se ele ainda estivesse aqui, eu não estaria tão realizada como estou agora. Há um ano atrás, eu só pensava num futuro com ele, e qualquer coisa longe disso me parecia impossível. Se tu me tivesses dito naquela altura que eu viveria tão bem sem ele, chamava-te de louco, Zé. Isso mesmo, maluquinho da cabeça. Mas cá estou eu, vês? Ah e queres mais Zé? Ontem eu lembrei-me dele. Pois é, a causa do meu sofrimento estava impecavelmente vestido naquela roupa que escolhi na altura especialmente para ele. Eu fixei essa memória por um tempo, e sabes como foi, Zé? Não senti mais nada; nem aperto do coração, nem lágrimas nos olhos, nem vontade de correr ao encontro daquele sorriso encantador. Eu surpreendi-me por causa dessa ausência de emoções. E aí eu percebi, Zé. Ele não é mais meu. Aquela possibilidade que antes me assombrava, virou realidade, e hoje nem me atinge mais. Eu fico feliz por ele, Zé, fico verdadeiramente tranquila ao saber que ele está bem, ou aparenta estar. Depois de tudo, segui meu caminho. Retomei o contacto com velhos amigos e está a ser fantástico. Está tudo uma maravilha, Zé. Esbarrei com a felicidade na esquina e agora só andamos juntas. O que eu senti foi real, Zé. E isso nunca vai mudar nem nada vai apagar. Mas como tudo que é bom, acabou. Nossa história teve um final triste, mas sabes uma coisa que eu descobri sobre finais tristes, Zé? Depois existe mais. Um fim para um começo. Um fim de uma história para o começo de outra. No meu caso, um recomeço. Estou recomeçando a minha vida, recomeçando a minha história. Estou a recomeçar-me a mim mesma.
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