Era tudo o que agora é.

Ora, antes de mais boa noite. Hoje senti um impulso mesmo forte, uma vontade a querer sair das entranhas, pronta para divagar no teclado. Tanto que caminhei em passo saltitante até à biblioteca escolar, entusiasmada. Outro motivo de tanta emoção foi o facto de que já não tinha este desejo frenético de me sentar em frente a um computador e escrever todo o pensamento que me passou pela cabeça naquele instante, naquela faísca de inspiração.
Não sei quanto tempo faz desde que escrevi pela última vez. E isso faz-me sentir como se já não pertencesse tanto a esta atmosfera, arrependo-me de não lhe dar atenção que merece e dava quando precisava de "um conforto". Mas agora a necessidade só volta de vez em quando. Escrevo pouco agora, mas não posso dizer que escreva melhor.
Sinto-me hipócrita. Com isso. E com outras coisas, talvez. No entanto tenho dias em que me encontro a questionar "serei verdadeiramente hipócrita ou isto apenas é a personalidade que sempre tive e nunca aceitei?". E eis a razão narrada, começando quando tudo começou, naquela pequena faísca de mente que neste preciso momento arde em lume brando, para que tudo seja feito, dito, lido, compreendido atempada e cuidadosamente:
Estava a olhar o espelho e a pôr um gloss que me tinha sido oferecido recentemente. A cor é linda, um tom rosa seco, com aplicações de brilhantes quase imperceptíveis mas que fazem com que esse detalhe faça a diferença. A risca acautelada e perfeitamente desenhada de eyeliner e a máscara já estavam postos. Olhei de novo para o espelho para ver o resultado final. Impecável. Mas olhei para os olhos. Olhei além deles. Vi a criança que era, dentro e atrás de mim. Não entendo. Como surgiu tanta mudança? Tornei-me aquilo que detestava. E gosto do resultado final.
Elas eram tão bonitas. Lembro-me de pensar "aquela até parece uma boneca". Duas delas estão na minha turma hoje. Olhava para elas, elas que caminhavam, riam, sorriam, brincavam, pulavam, até corriam com graciosidade, elas andavam sempre com um factor 'x' que as tornava brilhantes no meio dos restantes. Os restantes, como eu. Eu era parte dos restos. Não tinha categoria. Era mais uma, por ali. Porque não conseguia ser assim? Sentia-me suja. Substituível. Vulgarmente invulgar. Sentir-me assim tornou-se um hábito. Um hábito tão grande que sentia que podia fazer o que quisesse da minha vulgaridade. Um pouco revoltada talvez perante a indiferença entre as crianças, confrontei-as, perguntei mesmo "porque me deixam sempre sozinha e pelas outras esperam?". Deram uma desculpa que na altura me fez sentir que a culpa era minha.
Eventualmente, deixei de ser mais uma. Deixei de saber em que categoria passara a pertencer. Mas fui pior que restos. O estilo escuro passou a ser a minha marca. E elas continuaram a passar por mim, risonhas e com grandes olhos orgulhosos e felizes que a juventude dos seus anos lhes oferecera.
Sentia inveja de quem tinha gosto. Gosto em vestir-se. Tinha tanta inveja que não me permitia a mim própria ter esse gosto. Fez-me mal. Entretanto vi-me obrigada a desbloquear o pensamento nesse sentido. Mas senti medo. Senti medo, hesitei, depois pensei demais, fiz asneira. Falhei redondamente, portanto entrei no desleixado. Não via motivos de pensar nas cores, combinar tecidos, e acessórios? Completamente dispensável. E elas continuavam a passar, brilhantes, e eu sem saber como tinham tanto brilho.

Hoje, tudo é diferente.
O meu armário e as minhas gavetas já não são um caos. Tenho aquilo que gosto e me fica bem, na MINHA opinião. Independentemente do que os outros dizem. Há coisas que já me aconselharam usar por acharem que me fica bem e recusei porque não gostei. Porque não hei-de então usar aquilo que eu gosto, apesar de acharem que me fica mal? Lógico. Formei aí um princípio e comecei a utilizá-lo: Visto-me para mim.
Sempre gostei de maquilhagem pesada nos olhos. Sempre. Principalmente do risco preto junto à linha das pestanas. Num dia de festa deste ano, ousei usá-lo. Reação? Gente com quem nem tenho grandes confianças dizer que estava bonita, cabeças a virar na minha direção e mesmo o meu melhor amigo dizer "Olha, não é por nada, mas tu hoje estás mesmo gira", com cara espantada. Outro problema\complexo que eu tinha (e ainda tenho um bocado) são os meus dentes. Tenho dentes feios e isso é muito evidente. No entanto, sempre gostei de batom vermelho. Comprei um batom, vermelho cereja opaco, mesmo forte, e usei-o. Sem arrependimentos, continuo a usá-lo. Nunca tinha ouvido um "tens um sorriso bonito" com convicção. Comecei a ouvi-lo frequentemente. Comecei a aperceber-me que há mais gente a reconhecer-me na rua do que aquilo que eu julgo. Comecei a analisar as pessoas que conheço. São muitas. E só dessas, as que conhecem as que conheço são capazes de me conhecer também. Não importa, mas esse facto deixa-me de facto bem disposta. Gosto de me vestir bem, de perfumes, malas, sapatos, roupa. Os acessórios agora reconheço que são necessários. O estilo, a forma como se veste, entendo como arte que caminha, arte que é nossa, é quem nós somos e quem queremos ser. Os acessórios são a afirmação pessoal, a personalidade da vestimenta, o toque final, o polir de um diamante bruto. Chamem-me de egocêntria, vaidosa, o que quiserem e se quiserem. Mas egocentrismo, não é o mesmo que ter um grande ego. E eu considero que tenho um grande ego, apenas nunca o soube aceitar. Hoje também houve um momento que eu senti que é em situações dessas que me destaco um pouco. Perguntaram-me "se toda a gente agora faz x, porque é que não fazes também?" e eu respondi algo similar a isto: porque não faço o que faço só porque todos os fazem. Pelo contrário, sinto uma necessidade de criar tendências, algo que todos se sintam bem a fazer, usar, ser.
Não tenho medo. Não tenho medo que me julguem. Isso acabou. Deixam-me sozinha? Tudo bem, não há melhor companhia de mim própria do que mim mesma, se souber lidar comigo. E aprendi, com os anos, a lidar. A ler-me, a entender-me, embora às vezes não me entenda totalmente. Com isto, no fim de contas, minha presença foi procurada com vigor e agora é procurada com frequência. Sinto que não páro em casa. Sinto que a minha cabeça está sempre a trabalhar, estou sempre a voar no tempo de uma forma deliciosa.
E entendo tudo agora: não tenho brilho, tenho confiança.




Contudo, a dúvida inicial mantém-se: serei hipócrita por me ter tornado naquilo que detestava?

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